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Prestes Maia: ocupação, 

manequins e esculturas de gelo

Paulo César Xavier Pereira

O edifício Prestes Maia, localizado na avenida de mesmo nome no centro de São Paulo, é homenagem ao notável urbanista e prefeito do século passado.
Hoje, ocupado por cerca de 500 pobres famílias contrasta com o centro da cidade, tal como a avenida que se tornou um verdadeiro canyon urbano, intransponível tomada por ricos e velozes automóveis. Seria este um cenário desejado para São Paulo? O que tem essa imagem a ver com a cidade que teve o mais notável crescimento urbano no último século?


Ocupado há mais de um ano o edifício Prestes Maia se constituiu em solução de moradia para mais de 1000 pessoas, que ganham a vida em atividades precárias, destituídas de reconhecimento e, muitas vezes, de dignidade social. É um resultado das ambigüidades e contradições da urbanização contemporânea em que o paradoxo é que muitas dessas atividades se tornaram centrais com a globalização e quem as exerce precisa morar no centro da cidade.


Todavia esta solução de moradia encontrada por essas famílias pobres tem seus dias contados, em meados de Janeiro terão que sair. E ir para onde? Se, agora, a própria globalização cultural e econômica esta impondo um novo dinamismo urbano que leva a expulsa-los. Não há lugar para pobres numa cidade globalizada?


Parece que sim. No último fim de semana esta ocupação sofreu a intervenção de artistas convidados pelo movimento organizado pelos moradores do edifício, que sensibilizados não só com os problemas dessa população, mas com o da cidade empobrecida e, também, visivelmente preocupados com os caminhos que a própria arte vem trilhando na cidade.


Preocupados com a cultura globalizada vieram criar e inventar novos mundos. Mostraram que outra maneira de viver a cidade é possível, buscando caminhos para alegria de morar em lugares onde todos possam viver. Utopias? Talvez não.


Mas, é certamente a construção de possibilidades onde a experiência de novas maneiras de fazer arte com sentido, linguagens e, sobretudo, interagindo com a população de outra maneira que se gestou um momento de fusão entre artistas e uma comunidade lutando para morar dignamente. Disso resulta, ainda, por linhas tortas e poucos perceptíveis o caminho de encontro entre a arte e a cidade como a interação de mundos urbanos que estavam se vendo como opostos. Esse dialogo pode ser tão mais importante quanto São Paulo, uma cidade cindida pela tradição predatória, hoje é ainda mais intensamente atingida pelas forças da globalização cultural e econômica e suas conseqüências urbanas.


Porque a partir desse dialogo e da interação entre arte e população pode-se encontrar nessa presença de artista na ocupação, quase tudo. Foi uma ampla proposta experimental, que tendeu a dispersão, mas se aglutinava na construção da dignidade do morar, subindo aos céus pelos 20 andares dos dois enormes blocos com manifestações múltiplas que a cada piso revelava uma surpresa: fotos, instalação, hotel, jogo-da-velha, peixes, flores, papagaio, ginastas, lutadores, retratos, desenhos, riscos e rabiscos, pipas...


E lá em baixo, onde os blocos estão unidos por um pátio mais sólido e disponível como se fosse uma praça ocorreram animadas representações teatrais e ardentes performances, que integravam e colocavam a movimentar no mesmo passo morador, visitante e artista. De uma das janelas transformada em passagem, o olhar frio de mulheres de gelo vigiava a passagem de um bloco a outro, em que no final da passarela manequins se postavam como sentinelas, guardando a atapetada porta da casa da Célia, a “estilista do ridículo”. 

 

Nessa quase praças, moradores objetivos vendiam quitutes, guloseimas, bonecas, quadros, esculturas, toalhinhas, bordados etc. Artistas criativos buscavam inventar o reviver de uma arte, que sentem agonia, petrificada nos ícones divulgados pelos museus e centro culturais que pensam descartar a pobreza da vida sem luxo e riqueza, quando na verdade descartam a própria vida. Ocorria o encontro, que só a vida urbana proporciona, a proposta de artistas e de moradores fundia-se na busca de dignidade para a arte e para o abrigo, restituindo na unidade dessas dimensões o Direito à Cidade. 

 

Essa fusão do movimento social pela moradia e dos artistas pela arte comprometida com a busca do real poderá ser passageira, poderá ser fugaz, mas os efeitos dessa experiência de sócio-arte permanecerão tal como a frieza das estatuas de gelo ou da sisudez dos manequins, verdadeiros monumentos minimalistas dessa mínima ocupação da cidade, que é manter ocupado o edifício Prestes Maia. Porque tal ocupação é uma arte da luta política comprometida com a vida na cidade. Numa luta em que a arte urbana é, além do abrigo e da cesta básica, a raiz de um duradouro amor à cidade.


As esculturas de gelo, fabricadas pela artista Néle Azevedo, representavam duas mulheres nuas e frias olhando impassíveis pela janela. Sentadas, mínimas, tendendo ao zero, vigiavam a praça. Derretiam-se em lágrimas, tal como ficam os moradores de uma ocupação, sem ter para onde ir, em um edifício que vai ser esvaziado. Uma materialidade dura e fria que se esvai no tempo, o tempo quente da ocupação que só existe se é imposto ao concreto frio. Contradições.


Contradições superáveis, mas que só se viabilizadas num processo de interação dos moradores com a cidadania, na construção poética e política de um processo que resulte em nova cidade. Em uma nova maneira de viver na cidade e não dela. Pois, cidade não é negócio e para que nela todos possam viver, isso ela tem que deixar de ser.


A São Paulo atual é processo contido em tessitura urbana conturbada e recoberto por camadas ainda a serem desvendadas. Por isso, tal como os manequins que precisaram ser tocados e desnudados para que visitantes e moradores da ocupação satisfizessem sua atração pela curiosa imobilidade de “gente” tão bem vestida. Os manequins resultado do trabalho da artista Fúlvia Molina, que interagindo com a moradora Célia, costureira da ocupação, embonecou um homem e uma mulher, mostrando a direção do encontro e da cooperação. Mas, que na rigidez dos gestos maquinados e dos atos incompletos poderiam muito bem estar representando o ponto cego do urbanismo e a insuficiência da cidadania.


Tanto que se continuar assim, a ocupação vai se desmanchar como as esculturas de gelo.

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