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Cortejo glacial

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Guilherme Wisnik

No dia 02 de setembro de 2009 um fato muito surpreendente aconteceu na carreira da artista brasileira Néle Azevedo: fotos da sua instalação Monumento Mínimo, realizada nas escadarias da praça Gendarmenmarkt, em Berlim, se tornaram a imagem do dia na imprensa mundial, ocupando as capas dos principais jornais impressos do mundo, os noticiários televisivos e as chamadas de internet. Com um reconhecimento ainda modesto no Brasil, a artista se viu, de repente, no centro das atenções planetárias. Pois, sem saber, é como se tivesse entrado no olho do furacão contemporâneo, onde arte, globalização e ecologia se confundem na instantaneidade da imagem midiática. Em consequência disso, Néle veio a ocupar em 2010 um papel de destaque na exposição berlinense “Exemplos a seguir! – expedições em estética e sustentabilidade”, abriu a Bienal do Ártico, na Noruega, foi aclamada em Belfast, por ocasião do centenário da tragédia do Titanic em 2012, e integrou o grande catálogo Trespass (Intrusão: uma história da arte urbana não comissionada), um dos mais ambiciosos lançamentos da editora Taschen. O que explica esse fenômeno?

 

O Monumento Mínimo é um trabalho de arte pública que consiste na fabricação e colocação de uma multidão de pequenas esculturas antropomórficas de gelo em espaço urbano, e que se consuma com o seu total derretimento. Iniciado em 2001, o trabalho era originalmente constituído por apenas 1 ou 2 figuras, que testemunhavam sua existência efêmera e solitária diante dos passantes, em locais urbanos diversos. Mas a partir de meados da década, a artista começou a aumentar o contingente populacional de sua ação, com um visível ganho dramático. Em 2005, colocou 300 peças de gelo derretendo na Praça da Sé. Em Berlim, em 2009, já eram 1000, e em 2012, em Belfast, exatos 1517, equivalendo ao número de mortos no Titanic. E com isso, o lirismo contemplativo inicial se fez trágico, deixando explícito o sentido coletivo do ritual de vida e morte que se oficia de forma muda diante das pessoas em cortejo silencioso. Aspecto que se reporta à origem histórica do monumento: um “fazer lembrar” que está ligado aos ritos sagrados e funerários.

Aqui, no entanto, trata-se de um antimonumento. Pois, revertendo o sentido de monumentalidade como algo grandioso e eterno, porque destinado a perenizar algo perante a história, o trabalho de Néle opera no registro da precariedade e do efêmero. Caminho que supõe a aceitação de que a experiência contemporânea é parcial e transitória, e não mais eterna. Assim, ao viajar por inúmeras cidades do mundo, suas minúsculas figuras de gelo contracenam com espaços consagrados, instaurando uma reflexão cortante sobre o esgarçamento e a finitude, isto é, o tempo da vida e o lugar do indivíduo em meio à multidão. Daí que o Monumento Mínimo seja hoje inteiramente participativo, engajando o público no trabalho de retirar as esculturas do freezer e colocá-las em pedestais e altares urbanos (em geral escadarias). Daí, também, que ele acabe gerando reações inesperadas nas pessoas, como no caso de uma senhora no mercado de comidas de Ueno, em Tóquio, que, aflita com a urgência da situação, raptou as esculturas e correu para guardá-las na geladeira.

Em 2008, a intervenção foi feita na Piazza della Santíssima Annunziata, em Florença. E, naquela ocasião, teve a sorte de coincidir e ser incorporado por uma passeata de 40 mil pessoas contra a privatização do ensino na Itália, vindo a ser interpretado pela imprensa como um “final poético” da manifestação, que metaforizava o derretimento do homem e de suas instituições. E eis que de repente, no ano seguinte, topou de frente com a onda da sustentabilidade planetária, que tem crescido enormemente no mundo em diversas áreas, inclusive na arte. Pode-se dizer, nesse sentido, que o Monumento Mínimo pegou um “jacaré” nesse tsunami, que trouxe grandes agências internacionais de notícias para a Gendarmenmarkt naquele dia, ao mesmo tempo que acontecia a Conferência Climática Mundial em Genebra.

Por outro lado, há com isso o evidente risco de esterilização do trabalho artístico em sua natureza última, tornando-o uma demonstração literal da causa ecológica. A literalidade, aliás, é uma característica intrínseca ao Monumento Mínimo, já que as esculturas são humanóides. Ocorre que, contrariamente ao que pode parecer, o seu conteúdo não é dócil: o sacrifício. Assim, mesmo se quisermos ler o trabalho de Néle Azevedo na chave da causa ecológica será preciso entender que, através dele, alguns terão de morrer para que outros sobrevivam, já que o sacrifício é expiatório. Pessoalmente, quando eu vi a água gelada descer pelas escadarias da Praça da Sé sob um sol tórrido, em 2005, não pude deixar de pensar no rio de sangue correndo por outras tantas escadarias ao longo da história humana, durante os ritos sacrificiais pagãos. Seguramente, o Monumento Mínimo está longe de sugerir uma plácida comunhão pela paz universal.

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