Paulo Matsushita
15.03.2006
“Exercício de habitar o vazio” é uma outra forma de expressar a própria condição humana. E é isso que nos desvela o presente trabalho de Néle Azevedo.
Como se grafa “zero” em caracteres numéricos romanos? Não há como fazê-lo. O “zero”, expressão matemática foi resultado de uma longa elaboração filosófica a que chegamos por meio dos árabes. Para Pitágoras, o vácuo permite distinguir as naturezas dos corpos, por ser o vazio uma separação e distinção das coisas, “colocadas uma após a outra”. Aristóteles, que, como se sabe, fazia a recensão sistemática dos seus antecessores, citou o vazio de Pitágoras, para, afinal, opor-se a ele, na Física, argumentando que “admitir a existência do vácuo é o mesmo que afirmar a existência de um espaço separado (dos corpos), mas já se disse que é impossível” (IV, 11, 216).
A idéia do vácuo, do vazio, contrariamente, sempre esteve estruturalmente
presente no Oriente, na filosofia brâmane, no taoísmo, no budismo, mas sempre dentro de um contexto dinâmico e incessante de criação e avatar, em que esse princípio relaciona-se com o ser e o não-ser (este não é o vazio, mas a oposição).
Eu acompanho desde muitos anos a obra de Néle Azevedo e a evolução e
coerência desse ofício ininterrupto e persistente de defrontar-se com a matéria e indagar o seu sentido. Nas conversas que temos, a fim de ter mais elementos para apreciar a sua produção, percebo o quanto, não obstante fortemente lastreada no seu conhecimento da arte ocidental – a perspectiva, o suporte e o rompimento com ele, a relação do artista com o seu tempo -, ela se apóia em outros elementos para oferecer uma nova e particular visão da obra de arte.
Na presente instalação, Néle Azevedo, com muito engenho e sensibilidade,
também movida pela recordação, in memoriam, do seu Professor Ricardo Rizeck, usa de forma hábil o espaço do claustro, lugar da meditação, da comunicação com o transcendente, para situar a tragicidade da aventura humana, aqui representada por uma figura longilínea, em ferro fundido, agarrada ao fio muito fino e frágil do eterno, do sublime, e em luta contra a boca hiante da queda, quase aos seus pés.
Essa cena, moldada em concisão e despojamento, é potencializada pelo vazio que, na lição oriental, como vimos, é o princípio dinâmico, pleno de sentido, e não o contrário, que move e combina contrastes.
Trata-se de uma arte de essências, moldada em concisão e despojamento, em busca de indagações profundas, que, ao dispor de uma determinada maneira matéria, espaço, vazio, tessituras, linhas e formas, cria o forte efeito poético que nos captura ao observarmos a instalação dessa vigorosa artista.
Paulo Matsushita é poeta, autor do livro ainda inédito "O Império de um só dia".