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O lugar da arte

Texto de Guilherme Wisnik publicado na Revista Continuum (Itaú Cultural)

dez/jan 2011-2012

O artista norte-americano Michael Heizer afirmou, em um texto emblemático sobre a land art e o conceito de site-specificity (a especificidade do lugar), que "o trabalho (de arte) não é posto em um lugar, ele é esse lugar". Com essa frase, conceituou de forma clara o propósito de artistas que realizam trabalhos de grande escala em espaços abertos e em geral distantes da "civilização" urbana - os site-specifics (sítios específicos). Surgidos nos anos 1960 e também chamados de land art ou earthworks buscaram uma forma radical de fuga à institucionalização e à mercantilização da arte, atingindo um grau de liberdade distinto daquele que caracterizava as exposições no interior de galerias ou museus, em geral voltadas para o mercado. Assim, transformaram paisagens ermas em lugares dotados de um significado singular - daí a afirmação de que o trabalho artístico site-specific não é simplesmente posto em um lugar, como uma escultura criada no ateliê e instalada em um espaço qualquer.

Eminentemente ativas,  essas esculturas geográficas criam física e simbolicamente esse novo "lugar" e, portanto, passam a ser elas mesmas o próprio lugar, não podendo mais ser separadas daquela paisagem. Por sua contundência e radicalidade, os trabalhos de land art deram um curto-circuito na definição tradicional de escultura, invadindo em muitos sentidos os campos da arquitetura e da engenharia à medida que empregaram equipes de operários, realizaram movimentos de terra e utilizaram máquinas como escavadeiras, tratores e helicópteros.

É nesse contexto de hibridização e ampliação das antigas fronteiras artísticas que as esculturas site-specific retornam dos desertos para as cidades no final dos anos 1970, criticando a abstração e a placidez da escultura moderna. O escultor norte-americano Richard Serra criou trabalhos de grande escala para espaços urbanos, que foram pensados para um lugar específico e, portanto, só podiam existir naquele contexto. Esse és caso, por exemplo, do seu Arco inclinado (1981), uma imensa peça curva de aço corten instalada na Federal Plaza, em Nova York.

Criando uma barreira de 36,6 metros dentro da praça, a escultura fazia com que os apressados pedestres tivessem de contorná-la, sendo levados a desautomatizar sua percepção cotidiana daquele lugar. Tamanha foi a repercussão negativa dessa implantação que o sucesso da obra veio a significar o seu rotundo fracasso. Ou, melhor dizendo, fez com que a peça de Serra representasse um ponto-limite na história da escultura site-specific, pois, alvo de inúmeros processos, Arco Inclinado foi condenado pela Justiça americana em 1989, tendo de ser removido.  Coerente em relação aos princípios da linguagem site-specificity em arte,  Serra não permitiu que a obra fosse deslocada para outra praça da cidade, optando pela sua destruição.

Ao longo dos anos 1980, o conceito de site-specificity mudou muito,  à medida que foi substituindo a abordagem fenomenológica da escultura que altera a percepção do lugar concreto por práticas mais relacionais envolvendo a comunidade, que tratam o "site" não tanto como lugar físico, e sim como um contexto de relações entre agentes (vizinhança, grupos definidos por características étnicas, religiosas, sexuais ou de gênero e instituições). Na onda do multiculturalismo dos anos 1980 e 1990, com sua busca crescente de aceitação e incorporação do "outro" no processo criativo - como signo de uma suposta identificação entre arte e democracia -, dá-se uma desmaterialização do "site" propriamente dito, fazendo com que a especificidade resida então no contexto engendrado pelo lugar, chamado de "community-specific".

REPERCUSSÃO INTERNACIONAL  

Aqui,  cabe uma menção ao trabalho de uma artista brasileira que teve inesperada repercussão internacional. No dia 2 de setembro de 2009, fotos da instalação Monumento Mínimo, de Néle Azevedo, realizada nas escadarias da Praça Gendarmenmarkt, em Berlim, se tornaram a imagem do dia na imprensa, ocupando as capas dos principais jornais impressos do mundo, os noticiários televisivos e as chamadas de internet.  Monumento Mínimo é um trabalho de arte pública que consiste na fabricação e colocação de uma multidão de pequenas esculturas antropomórficas de gelo em espaço urbano e que se consuma com o seu total derretimento. Iniciado em 2001, originalmente o trabalho é composto de apenas uma ou duas figuras, que testemunhavam sua existência efêmera e solitária diante dos passantes, em locais urbanos diversos. Mas a partir de meados da década a artista começou a aumentar o contingente populacional de sua ação, com um visível ganho dramático. Em 2005, colocou cerca de 300 peças de gelo no centro de São Paulo. Em Berlim, em 2009, já eram mil.

Com um reconhecimento ainda modesto no Brasil, Néle, sem saber, entrou no olho do furacão contemporâneo, no qual arte, globalização e ecologia se confundem na instantaneidade da imagem midiática. Mas o que restaria, aqui, da idéia do site-specific? Talvez nada, no sentido do que foi descrito até então. Pois o que é específico nesse caso não é nem o lugar nem a comunidade envolvidos, mas a oportunidade inscrita em sua forma de difusão. O trabalho de Néle se vale de um novo sentido de totalidade dado pela questão ecológica.  No final das contas, resta a questão: qual poderá ser o futuro da arte site-specific num mundo que tende a ser povoado por "cidades globais" e por "cidades genéricas", todas elas unidas pela internet e pelo consenso ecológico?


Guilherme Wisnik atua como professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Crítico de arte e arquitetura, é autor de livros como Lucio Costa (2001), Caetano Veloso (2005) e Estado crítico: à deriva nas cidades (2009). É membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), da Latin American Studies Association (LASA) e vice-diretor do Centro Universitário Maria Antônia (USP).

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