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antes da piracema urbana

Quando recebi o convite da Funarte para ministrar uma oficina de intervenções urbanas dentro do programa “Desafios Contemporâneos” em Porto Velho, organizei minha agenda. Voltei de Londres uma semana antes, fiz tudo pro trabalho caber no meu tempo.

 

Por quê?  Já andei tanto por esse mundo de meu Deus... 22 estados brasileiros e 26 países. Rondônia tinha existência no meu imaginário pela lembrança da Ieda, colega de trabalho na agência do INPS em Pinheiros, nos anos 70, quando ainda se consolidava a ideia de transformar Rondônia em estado. Era algo tão distante e diferente contado pela Ieda que pra mim ficou diretamente ligado na memória Rondônia o lugar estrangeiro de onde Ieda veio...

 

Muita vida rolou, encaminhei-me para a faculdade, mestrado, para o trabalho com a arte e andei mundo.

 

Preparando o material da oficina, além de me lembrar daquela Rondônia/ Ieda/estrangeira, me dei conta que Porto Velho era mais desconhecida e misteriosa para mim que Paris ou Berlim. Que história da Arte Urbana contaria? Levaria modelos do “sul maravilha” ou da Europa? A intervenção nos espaços urbanos tem um sentido singular para cada cidade, não funciona como fórmula/forma/fôrma. Então, todas as tentativas de preparação me pareciam falsas, um tipo de armadura na defesa de um saber hierárquico e neocolonialista.

 

Optei por me esvaziar de um arsenal de informações; chegar à cidade sem nada, experimentar ser um copo/corpo vazio, desse modo teria espaço pra ver a cidade, para trocar saberes com as pessoas na oficina da Casa de Cultura Ivan Marrocos. Isto de fato aconteceu: uma troca de saberes sem hierarquia.

 

Foram cinco dias de trabalho, de conversa, de bons encontros e caminhadas pela cidade. Já no terceiro dia surgiu a piracema urbana dentro da oficina, durante uma discussão sobre espaços públicos de Porto Velho.  A conversa começou com a sugestão de um trabalho na balsa que liga a cidade a outra margem do rio.  Nessa conversa veio junto a balsa, a ponte, a usina, o remanejamento da população ribeirinha, a cabeceira da ponte, o loteamento e a nova ocupação da margem.

 

A construção da usina no rio madeira destruiu a cachoeira onde acontecia a piracema dos peixes. Daí a ideia de trazer os peixes pra cidade cresceu e envolveu os participantes da oficina.

 

Pensamos que Piracema resumia poeticamente as questões do desvio do rio, da construção da usina e da ocupação do solo na margem esquerda do rio.

 

Escolhemos o local da intervenção: a Praça Getulio Vargas em frente ao Palácio do Governo do Estado.  Nessa mesma praça as andorinhas fazem a sua “piracema” anual. É um fenômeno extraordinário.  Pareceu-nos uma metáfora perfeita usar o mesmo local, ocupar junto com as andorinhas que, vivas no ar, fazem um imenso balé e nos lembram da força expressiva da natureza. A piracema urbana foi desenhada no chão com estêncil.  Centenas de peixes subiram as escadas da praça em direção ao Palácio.

 

Rondônia deixou de ser estrangeira.  Porto Velho tem existência concreta e muito a se fazer. A cidade vista de fora (na visão do Google), “foi criada por um industrial americano que explorava madeiras”. Os pontos turísticos e os monumentos oficiais marcados são todos ao gosto ocidental e nenhum povo indígena é sequer considerado na formação da cidade.

 

A pluralidade de acontecimentos e de junções da historia vista de perto é muito mais rica que a visão mostrada assim ao longe. Caberia contar outras histórias na rede virtual, criar outra “vista” de Porto Velho, de marcar outros “monumentos de saberes”.   Mas esse é um assunto extenso que não cabe aqui. Certamente a piracema urbana será levada a  diferentes  espaços  pelos artistas de Porto Velho e inundará a cidade...

 

São Paulo, 21 de novembro de 2013  

 

Néle Azevedo

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