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Como alcançar pássaros em vôo

Néle Azevedo

Da fresta de minha janela, um volume cinza, geométrico, de edifício grande,  recorta o céu que aparece azulando por trás. As manhãs trazem sempre uma promessa que quase nunca se cumpre no andamento do dia.

 

Jamais tive idéia de futuro. A vida era tão precária, tão capenga, que a palavra futuro soava longínqua, algo como um país distante. A sobrevivência imediata e cotidiana absorvia o nosso tempo presente. Era preciso inventar modos de sobreviver, modos de furiosamente brincar. Criar mundos era uma tarefa cotidiana. Daí que o futuro foi sempre o presente inventado, como nesta manhã que me promete o azul.

 

Inventando os dias, cheguei hoje aos 50 anos. Lá fora, o ruído dos aviões ocupa permanentemente o espaço. Ondas sucessivas de pessoas vêm e vão.  O movimento de migração dos povos foi invertido em direção ao sul, numa espécie de piracema urbana. A geografia se move.

 

Estamos em 2064 e eu, em São Paulo. Em relação a ver o mundo hoje, tento fazer um desenho de observação, mas vejo-me dentro de uma névoa, sem visibilidade clara. Busco frestas entre o espanto, o pressentimento e a esperança. Por enquanto, continuamos no meio do redemoinho, derretemos todos como monumentos mínimos, entre o desejo de alcançar pássaros em voo e de ultrapassar a onda debaixo de nossos pés, de nossas piracemas mortas.

 

Impelidos pela necessidade e pela escassez dos recursos naturais, estamos forçados a nos compreender através da visão do outro, como a de Davi Kopenawa, indígena Yanomami: Os brancos dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. O que seria sonhar além de nós mesmos? Como estender nosso sonho ao sonho da terra?

 

Por um lado, a riqueza econômica das últimas décadas não nos salvou da desigualdade. Antes, ao contrário, aprofundou-a, visto que as nossas estruturas sociais foram fortemente assentadas na desigualdade, na herança da longa escravidão, na superioridade do pensamento moderno que escreve uma historia única, com seu tempo único, e com isso exclui as outras histórias, arrastando tudo nesse tempo. Por outro lado, disseminaram-se, como sementes, as micropolíticas de resistências, maneiras autônomas e comunitárias de lidar com a agricultura, com a economia, com a cultura. A longa e penosa resistência cotidiana dos povos indígenas é ouvida hoje. Enfim, outras histórias vêm sendo contadas. Outras formas de pensar a vida cresceram muito e tomam corpo frente ao pensamento hegemônico. São justamente essas forças nascidas da fragilidade, do miúdo, dos invisíveis e dos silenciados que tornam o mundo mais polifônico.

 

Na arte, o oficio é achar brechas.  Certas práticas artísticas do final do século XX e começo do século XXI – as intervenções urbanas, a arte efêmera, as instalações, as ambiências sonoras, a arte relacional que buscava a participação imediata do outro como um cocriador, operando uma dissolução entre arte e vida – foram incorporadas pelo sistema, pelas instituições, pelas empresas e pela publicidade, buscando envolver o consumidor em ambiências pela cidade, em “intervenções” pelo privado no espaço público que resta; surgem com aparências estéticas e esvaziadas de senso crítico.

 

Não importa quanta técnica tenhamos hoje à nossa disposição. O ofício de achar brechas ou frestas é fugidio.  Há uma luta por uma fresta, uma fresta que se fecha e é preciso buscar outras sem apelar para estradas conhecidas. Ao contrário dos aviões que são lançados ao céu em rotas estabelecidas, os pássaros desenham seu próprio voo.

 

Então, por agora um novo dia se instaura e vamos buscar as ferramentas de girar engrenagens, colocar os pés nas pegadas do dia anterior e restabelecer os vínculos e reafirmar os nomes. Mas qual foi mesmo o sonho? Vamos nos dedicar a edificar o dia...

 

Texto publicado no jornal Folha de S. Paulo, no caderno Ilustríssima, em 09.11.2014, e no suplemento do Goethe Institut, em 27.03.2016, no Semanário DIE ZEIT (Alemanha).

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