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Estado de suspensão
Intervenção urbana (e humana) de Néle Azevedo

Sylvia Werneck

2019

Quanto dura uma vida? Muitos fatores devem ser considerados nesta equação - a constituição e funcionamento de suas células, as condições do meio em que existe, como se nutre, como se regenera, como lida com as ameaças à sua integridade. Se pensarmos na vida humana, então, há que se somar a isto tudo o que toca o espírito, individual e coletivamente. Vida, especialmente a humana, não se desenvolve sozinha, não se sustenta no isolamento. Sua sobrevivência e seu bem-estar dependem da cooperação entre diversas pessoas.

Uma comunidade compõe-se de muitos indivíduos, cuja subjetividade se coloca em relação com outras em assuntos que afetam a coletividade. Assim se organizam desde famílias até sociedades e países inteiros. Existe um equilíbrio instável e dinâmico entre o eu e o nós. Para garantir a integridade de um é preciso atuar levando muitos em conta.

 

É inegável que a Néle Azevedo interessa o “nós”, especialmente quando este “nós” está em posição vulnerável. Trata-se daquele nós que se apresenta multiplicado em diferentes esferas - pode ser chamado de mulheres, de indígenas, de trabalhadores, ou mesmo ser parte de mais de um grupo. Antes de qualquer outra coisa, “nós” significa gente. Na visão de mundo de Néle, que seu corpo de trabalho aborda, é imperativo que tomemos consciência do outro como parte de um todo sistêmico, no qual cada elemento afeta os demais. Sua produção aborda as ameaças que pairam sobre muitos desses eus, mas sempre a partir de sua indissociabilidade do nós.

 

Néle investe no caráter da arte como instrumento de conscientização social. Portanto, privilegia ações no espaço público, onde o assunto evidenciado pode tocar não apenas os costumeiros apreciadores, mas também a população geral não habituada a frequentar os espaços (algo restritos, é preciso lembrar) de museus ou galerias. É na rua que o cidadão comum está, e é lá que uma obra pode efetivamente estabelecer um diálogo de mão dupla. Tem sido assim com Monumento mínimo, intervenção que já foi apresentada em 24 cidades ao redor do mundo. A performance/instalação consiste em convidar os transeuntes a colocarem pequenas esculturas de gelo em formas humanas em um espaço público e observá-las se derreterem. Da transitoriedade da vida a questões ambientais, muitas são as percepções despertadas.

 

É também o gelo o material escolhido para a intervenção Estado de suspensão, que a artista apresentou no largo em frente ao Theatro Municipal de São Paulo em 28 de junho de 2019. Mil figuras de gelo em formas humanas com membros alongados, tanto masculinas quanto femininas e de diferentes tamanhos, iam sendo penduradas em uma estrutura metálica. No chão, bacias e tachos recolhiam os pingos do derretimento, e o som era captado e amplificado em tempo real. As luzes do começo da noite atravessavam as esculturas efêmeras, causando uma variedade de nuances e reflexos que dançavam ao som da melodia incidental. Passantes paravam para assistir e, por vezes, arriscavam suas elucubrações sobre o espetáculo inusitado. Muitos se deixaram ficar até que não sobrasse vestígio das figuras. Expressões como “fragilidade humana”, “a vida passa rápido” ou “estamos acabando com o planeta” eram ouvidas aqui e ali.   

 

Estado de suspensão traz à tona diversos aspectos da condição humana. A começar pelo material, um dos estados da água. Nosso corpo é composto por cerca de 70% de água, e a privação desta determina, inexoravelmente, o fim da vida. Observar as figuras se desmanchando é como observar a transitoriedade de nossa presença no mundo. Há, por outro lado, algo de poético na transformação de diferentes corpos em algo uno, fluido e capaz de proporcionar crescimento a outras formas de existência, alimentando terra e brotos que servem de alimento a ainda outros seres viventes. O contraste entre a fluidez do material em estado líquido, sua leveza quando gasoso e sua resistência (ainda que fugaz) quando sólido também fica em evidência. Mas Estado de suspensão fala, sobretudo, do momento histórico, social e político que o país atravessa. A soma das figuras penduradas por um fio que apenas é capaz de retê-las por poucas horas exprime o alerta do sufocamento de direitos a que estamos sendo submetidos por determinações vindas dos órgãos que detêm o poder. Conquistas históricas como leis trabalhistas, direitos humanos para grupos socialmente vulnerabilizados, medidas de preservação ambiental e políticas de combate a desigualdades vêm sendo desmontadas. Crescem as inseguranças, acirram-se os ânimos, instaura-se uma tensão subjacente a todas as atividades cotidianas. A arte parece o último refúgio, mas esta tampouco escapa das perseguições. Mas, teimosa que é, se recusa a desaparecer. A brevidade da intervenção é ilusória – quem viu levou consigo o impacto visual e a reverberação do som, que despertam a consciência da finitude e fragilidade de se estar vivo.

 

Somente ao se conectar com as pessoas comuns é que um trabalho assim é capaz de devolver à arte sua capacidade de despertar no espectador uma inquietação sobre a necessidade de transformação social. É na rua que a criação artística ganha potência, é no contato com o outro que se funda o sentimento de pertencimento. É neste encontro que se dá corpo ao reconhecimento da força da comunhão.

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